
A renovação de contrato do treinador português Jorge Jesus com o Flamengo, veiculada durante a semana, coloca em pauta, mais uma vez, o embate sobre as nacionalidades dos técnicos que atuam no futebol brasileiro.
Com o sucesso obtido em 2019, com o título do Campeonato Brasileiro e da Libertadores, Jesus espantou qualquer chance de crítica ao seu trabalho à frente do rubro-negro carioca.
Mas será que os comandantes nascidos e/ou formados em terras lusitanas têm algo especial ou o sucesso é mera coincidência? O conhecimento por eles desenvolvido é utilizado em algum outro centro esportivo?
É um bom tema para o Toque de Bola desenvolver, com treinadores e estudiosos locais do futebol.
“Não foi ao acaso”
Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e doutor em Ciência do Desporto (PDCD), da Faculdade do Desporto da Universidade do Porto (Fadeup), Portugal, Marcelo Matta afirma que o sucesso dos gajos ao redor do “planeta bola” não é coincidência, e sim reflexo da preparação.
“Isso não foi ao acaso. Portugal estuda o futebol, com destaque para as Universidade do Porto e de Lisboa, desde a década de 90 e, hoje, é referência. Os portugueses utilizaram uma metodologia fantástica em cursos de formação de treinadores. Eles tinham uma preocupação muito grande em preparar os profissionais em todos os sentidos: saber o que é liderança, saber como se comunicar, saber avaliar, criticar, refletir, etc. Não é só o conteúdo específico da modalidade esportiva. Isso fez com que muitos nomes surgissem na área técnica. Isso é reflexo de preparação”, disse Matta.

Humildade e disciplina
Segundo Marcelo, os portugueses reconheceram de forma objetiva a necessidade de recuar em determinado momento e desenvolver uma estrutura para evoluir.
“Interessante é que não são apenas acadêmicos envolvidos com futebol. Ex-jogadores também fizeram os cursos para poderem trabalhar na função de treinadores em Portugal. Todos eles se permitiram estudar, abrir a cabeça para novos conhecimentos. Isso, aliado à disciplina e a humildade de reconhecimento, contribuiu para o atual estágio da preparação de treinadores portugueses. O brasileiro ainda é um pouco resistente, mas isso está mudando aqui aos poucos”, completou.
À procura do conhecimento
Na análise de Matta, o sucesso de Jorge Jesus é um exemplo claro da metodologia aplicada na formação dos comandantes portugueses.
“O Jorge Jesus é um exemplo claro de um estudioso do futebol, até de forma empírica. Ele pega conhecimentos no basquete, no futebol americano, no handebol, e aplica, com outros métodos, nos seus treinamentos. Isso é estudar, isso é valorizar as novas evidências. A formação, atualmente, é procurar o conhecimento. A forma como o treinador vai aplicar isso no dia a dia é que é individual de cada um. Ele faz isso muito bem e pode ser esse o ponto do bom trabalho que ele faz. Eu não tenho dúvida de que isso é muito útil. Pesquisa, metodologia e ciência são fundamentais hoje em dia”, analisou.
Ainda de acordo com o professor, essa procura por conhecimento veio de variadas formas ao longo da história do futebol e tem contribuído para a queda de alguns clichês da modalidade.
“Até pouco se dizia que ‘jogo é jogo e treino é treino’. Isso é a maior bobagem do futebol. O melhor treino é o jogo. Por isso é notória a evolução do futebol português nesse sentido. Agregar conhecimento aos treinos fez parte do método de formação e hoje podemos ver muitos portugueses fazendo sucesso na área”, finalizou.

A periodização tática
Treinador de futebol com a licença A da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e especialista na modalidade pelo Núcleo de Pesquisa e Estudos em Futebol (Nupef), Alex Nascif compartilha da opinião de Marcelo Matta e vê grande influência da literatura portuguesa na formação de treinadores brasileiros.
“Os estudiosos portugueses já vêm desde a década de 90 observando o futebol de uma maneira mais sistêmica. O futebol é abordado de uma maneira bem mais ampla, não apenas como técnica, como era no início, técnica e física. Alguns dos propulsores das teorias portuguesas são o professor Júlio Garganta e o Vitor Frade, que é o idealizador da periodização tática. Não foi ao acaso, haja visto a gama de estudos e aprofundamento que eles têm em Portugal. Muito do que é trabalhado no Brasil vem de métodos portugueses”, disse Nascif.
“Treinador não tem nacionalidade”
Diante das críticas que muitos treinadores estrangeiros recebem quando vão trabalhar em algum outro país, o que é o caso de Jorge Jesus no Flamengo, Nascif foi enfático ao pedir que isso pare.
“Acho benéfica a globalização do mercado de treinadores. As pessoas têm que parar com isso. O José Mourinho disse há um tempo atrás que técnico não tem nacionalidade. O que importa é o treinador saber montar o treino. Nisso, os portugueses saíram na frente e o brasileiro ficou parado no tempo”, analisou.

O ponto de virada
Segundo Nascif, o sucesso de José Mourinho a partir de 2004, quando conquistou a Champions League com o Porto, fez com que todos olhassem “com outros olhos” para os métodos portugueses.
“Isso tudo só se deu como um caso de sucesso quando o José Mourinho começou a ganhar títulos. Ele foi campeão com o Porto em 2004, teve grande sucesso no Chelsea, Inter de Milão, entre outros. A partir da grande ascensão do nome Mourinho, começou-se a estudar o que os portugueses tinham de diferente. Foi aí que os centros do futebol mundial começaram a adotar a literatura portuguesa em seus cursos, inclusive o Brasil”, afirmou Alex.
O treinador fez questão de ressaltar que isso não diminui a importância do Brasil no cenário do futebol. “A metodologia europeia é baseada no famoso ‘futebol de rua’, coisa que o Brasil sempre teve. O diferencial é a forma como cada detalhe foi aproveitado. Cabe a nós estudar como eles chegaram nessa metodologia de sucesso e aplicar aqui para também obter sucesso”, finalizou.
Texto: Toque de Bola – Pedro Sarmento, supervisão de Ivan Elias