Nas ondas do Rio Doce! Pioneiro conta a história do surf a mais de 300km do mar

O Toque te contou há algum tempo a história do Campeonato Mineiro de Surf, cuja última edição ocorreu em 2018 e teve juiz-forano campeão.

Depois da apuração da matéria do Mineiro de Surf, uma frase ficou martelando na cabeça do repórter sobre a volta da competição. “Espero conseguir realizar o próximo evento em 2023.  Meu interesse é fazer o campeonato em Minas Gerais. Nas ondas do Rio Doce, em Governador Valadares”, disse o idealizador e organizador da competição, Kau Cavalcanti.

Dupla surfa com Governador Valadares ao fundo

Se um campeonato de um esporte ligado às ondas do mar para atletas de um estado que não tem litoral já é algo inusitado, imagina praticar e competir neste esporte em um rio. Aliás, um dos maiores rios de Minas Gerais. Por isso, lá foi o Toque saber: tem onda no Rio Doce? Como é isso? Dá para realizar um campeonato de surf em Governador Valadares? O que esperar de uma competição assim?

Homenagem

Quem responde é ninguém menos do que Paulo Guido, pioneiro nas ondas do Rio Doce e único remanescente dos que primeiro embarcaram nesta aventura. “A turma foi se desfazendo, por conta da vida mesmo. Outras pessoas vieram por conta do surf, e eu estou até agora.”

Para o desbravador das águas de Governador Valadares e descobridor da viabilidade do surf a mais de 300km da praia mais próxima, um Campeonato Mineiro de Surf por lá seria uma homenagem a essa história e aos locais. “Um campeonato de surf em Governador Valadares, para quem é daqui, seria o ponto máximo. Não sei nem como colocar em palavras. Já pensou? Um campeonato Mineiro no mar já é algo extraordinário, mas no rio, aqui, seria uma homenagem e tanto para os valadarenses e todos que amam esse esporte na cidade. Claro que é viável. Porque a onda é bem próxima à margem. Onde ela está é um parque municipal de fácil acesso para todo mundo: surfistas, público e estrutura. Claro que a corredeira não vai facilitar, vai jogar do lado dela e querer bater na gente. Mas seria demais”, projeta Paulinho.

Acolhedor e disseminador

Uma competição de surf em um rio tem suas características próprias. Apesar de afirmar que todo mundo que surfa pode surfar as ondas do Rio Doce, Guido sabe que os sufistas de Governador Valadares têm alguns caminhos e técnicas a indicar a quem não está habituado. Por isso, a competição já nasce com o espírito solidário do esporte dando o tom, e tem a intenção de espalhar a vontade de experimentar a sensação para todos que moram próximos a cursos d’água.

“Conversando com o Kau sobre o Campeonato, ele seria mais um festival. Nossa função, de quem já surfa esta onda, seria orientar, fazer com que as pessoas colocassem para funcionar o surf delas aqui. Ensinar todo o beabá, o passo a passo de corredeiras, para a competição poder fluir. A partir daí, levar esse espírito de surf de corredeira para cara morador que tem um rio próximo da sua casa e cidade. Transformar isso, quem sabe, em um circuito mineiro de surf em rio”, enxerga o pioneiro.

Semelhanças

Rasgadas e outras manobras são possíveis

Segundo Guido, para surfar no Rio Doce, os surfistas de mar já têm o suficiente. “O equipamento é igual. Tudo que surfa no mar, surfa no rio. Tem que ter essa prancha ‘no pé’. Claro que cada um tem sua prancha de preferência, mas o resto é o mesmo. Gosto de colocar na prancha um biqueira, porque na margem e no fundo do rio há muitas pedras. Se tivesse uma ‘rabeira’ eu usaria. Gosto também de surfar com uma prancha que tenha deck dianteiro. Não só a parafina, que usei recentemente, mas ela quebrou. Daí passei para uma antiga, que ganhei no Mineiro de Surf, que tem o deck dianteiro. Foi uma maravilha. Tem gente que acha feio, eu também. Mas o surf é outro”, explica.

De acordo com Paulinho, as ondas de rio são semelhantes às da praia. “Para ser surfável, uma onda de corredeira tem que ter a formação similar à onda de mar. Ter um bom tamanho. Você tem que estar com o equipamento certo, com uma prancha de boa flutuabilidade. Mas, no mar, você rema e vai de encontro à onde, esperando ela vir. No rio não. Como a onda é formada por corredeiras, tem que remar contra o fluxo e ele te leva até o lugar da onda. Antigamente, tínhamos que entrar no peito mesmo, encarando uma correnteza muito forte com o rio cheio. Então, surgiu de um dos colegas a ideia de amarrar uma corda em uma árvore na beira e, colocando a prancha de lado, ela nos jogar na onda. Isso para evitar remar tanto. Vai remar, mas não o tempo todo. A partir daí, a sensação é bem similar à de surfar no mar”, conta.

Diferenças

Já a atenção é deslocada. “Quando surfamos no mar, ficamos sempre de olho na condição de vento e ondulação. Por vezes, a lua, por conta da maré. Aqui, não. Faça chuva ou faça sol, é a mesma coisa. O que muda é o volume do rio quando chove. Quando está subindo muito, com velocidade, a atenção tem que ser na hora, com as coisas que vêm descendo o rio. Galho, árvore, toco que ele arrasta das margens quando sobre muito repentinamente”, conta Paulinho.

Conhecer e reconhecer o local é fundamental. “Uma outra diferença para a onda do mar é que ela te leva e você vai chegar na beira. No rio não, você sai dela e vai descendo a corredeira, levado pelo volume de água na cabeça. Então, tem que remar e sair dessa zona de conflito. O surfista tem que ter bastante disposição e um pouco de conhecimento de corredeira para surfar em rio. Sempre avaliamos antes, descemos a corredeira sem prancha, para avaliar o que tem no rio, os redemoinhos, depois desce de prancha. Se puder ir primeiro de body board para sentir o sacolejo e a pressão da onda. Depois ir de prancha para surfar mesmo.”

Com volume pelas chuvas, Rio Doce recebe os surfistas

Como o público e juízes querem show, e os surfistas mandar sua criatividade em cima da prancha, pode-se dizer que isso está garantido no Rio Doce. “Quanto às manobras, vai de acordo com as ondas. Aqui há ondas para a direita, para a esquerda, conforme o volume do rio. Tem as mais cavadas, mais ‘morrada’, mais longas. Dá para esticar os cut backs round house, rasgadas, layback. Há muito tempo atrás, eu dava aéreos na onda, uns 360. Com o tempo, perdi essas práticas, mas é possível. Recentemente, entrei de body board em uma onda que chamamos Boca do Leão aqui. Nela, rola até um tubo. Mas é uma onda volumosa, pesada. Ela roda e te joga. O caldo é inevitável!”

Como tudo começou

Paulinho conta que o início do surf no Rio Doce envolveu outro esporte. “Moro em frente ao Rio Doce desde 1977. Minha relação mais íntima com o rio começou por volta de 1984, quando iniciou-se a prática da canoagem nele, aqui em Governador Valadares. Menino, ficava na beira do rio, vendo aquele tanto de gente remando os caiaques, fiquei curioso e queria experimentar, além de chegar na margem do outro lado. Então, sempre que alguém parava de remar, eu pegava o caiaque emprestado, escondido dos pais. Depois vieram as competições, a prática nas corredeiras. Começamos a surfar com os caiaques em umas ondas formadas nelas.”

Na telinha, o grupo de canoístas descobriu que dava para fazer mais no Rio Doce. “Uns amigos visitavam a Suíça sempre nas férias. Traziam de lá fitas de vídeo de canoagem para vermos e poder aprimorar nossa técnica em corredeiras. Em uma dessas, tinham umas imagens de umas pessoas surfando em um rio. Quando vimos aquilo, foi um choque. A gente já gostava do surf, e praticávamos no mar, bem sem jeito ainda, quando íamos de férias, no verão, para a praia. E se existia a possibilidade de surfar lá, como a gente viu, podíamos fazer aqui nas nossas corredeiras”, constataram Guido e seus amigos.

“Pegamos pranchas emprestadas, e fomos surfar em algumas dessas corredeiras menores. Vimos que dava certo, mas que precisaríamos de uma onde maior. Já tínhamos conhecimento desta onda que atualmente surfamos, na Corredeira do Morro do Urubu. Fomos lá com pranchas, até de body board, uns quatro ou cinco amigos. Isso foi evoluindo. Na temporada de chuvas então, fui lá para poder surfar. Achei que a onda estaria meio cheia, mas nunca imaginei que o que eu veria seria possível. Tínhamos o hábito de surfar com a onda pequena, de meio metro. Quando vi aquele ondão, assustei. Mesmo assim, fiz algumas tentativas, em vão”, relembra Paulinho.

As ondas

O surf rola com Governador Valadares ao fundo

Guido conta que cada uma das ondas do principal pico de surf de Governador Valadares tem suas características. “Na Corredeira do Morro do Urubu temos quatro a cinco ondas surfáveis. Depende do volume de água no rio. A primeira é uma esquerda, formação bem parecida com a onda do mar. Fácil de surfar. As principais manobras são as batidas e os cut backs. As vezes dá para uma rasgada, mas se você não tiver um retorno rápido, ela te joga para fora da onda, e você desce a corredeira. A segunda é a mais famosa. O ‘V’, por conta de seu formato semelhante à letra, quando o rio está vazio ela tem essa aparência. Quando o rio está cheio, ela fica uma parede reta e quadrada, com mais ou menos 4m a 5m de extensão. Mas quando está mais vazia, é só um pico mesmo. Ela pode ser surfada para todos os lados”, explica.

“A terceira onda, que fica embaixo da árvore, foi a pioneira. Tem cerca de meio metrinho, uma direita. É fácil de entrar, você surfa e volta. Mas ela ocorre com o rio bem vazio mesmo. Logo atrás dela, com o rio bem cheio, aparece uma direita, com formação bem bagunçada. As vezes tem parede, outras não. A principal emoção dela é que fica na frente da Boca do Leão mesmo. Essa última é só pra poder entrar e sentir o sacolejo do rio. Você tenta sair pela frente e ela puxa para trás, quando você sai para o fundo dela, pode segurar que ela vai te jogar. É se garantir agarrado a prancha e não afobar que você vai flutuar”, completa o pioneiro.

Texto: Toque de Bola – Wallace Mattos

Fotos: arquivo pessoal/Paulo Guido

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