“Mudou muito minha visão sobre o meu modo de vida”.
Assim o juiz-forano Raphael de Sá, que integrou a equipe de estatísticas do voleibol sentado, define como foi significativo, não só para a sua carreira, mas a sua vida, participar dos Jogos Paralímpicos Rio 2016, Ele atuou em 14 jogos dos torneios masculino e feminino da modalidade, incluindo a final feminina vencida pelos Estados Unidos contra a China e a disputa da medalha de bronze masculina, vencida pelo Egito sobre o Brasil.
De Sá, que atua como estatístico de vôlei nos jogos do JF Vôlei em Juiz de Fora – os dados de cada partida são lançados no site da Confederação Brasileira de Voleibol – tem consciência que a experiência vivida durante a competição no Rio de Janeiro vai muito além do esporte.
Confira, abaixo, a íntegra da entrevista concedida por Raphael de Sá ao Toque de Bola:
Histórico na estatística e o trabalho nos Jogos Paralímpicos
Dentro da estatística eu já trabalho há cinco anos, mas sempre com o voleibol de quadra. Nunca tinha participado da estatística do voleibol sentado, assim como algumas outras pessoas da nossa equipe que trabalharam lá. Acho que eu era o mais novo na estatística com cinco anos de experiência. Um dado interessante é que a primeira olimpíada da história onde os estatísticos não eram voluntários. Eram pessoas que realmente entendiam da situação para fazer. Um voluntário com três meses de treino não conseguiria desempenhar a função que a gente desempenha, não só na qualidade, mas acho que nem o básico eles conseguiriam fazer. Isso foi uma coisa pela qual a gente foi muito elogiado na Paralimpíada.
As funções desempenhadas
As duas funções que eu desempenhei na estatística do voleibol sentado foram digitador e anotador. Nós trabalhamos na Superliga em duplas. Lá foram três pessoas. Uma que avalia, e fica no centro. A pessoa da direita anotava o que estava sendo avaliado e a pessoa à esquerda digitava num tablet tudo o que estava sendo avaliado. Tinha que digitar em tempo real porque o jogo era todo feito em tempo real. A televisão pega nossas estatísticas, o telão do placar. Se a gente lançasse uma substituição errada no telão, no site, no aplicativo, tudo iria sair com essa substituição que a gente lançou erroneamente. Demandava muito mais atenção da nossa parte.
Semifinal com problemas técnicos
Nos jogos, um dia houve problema no sistema e ocorreu uma troca de computadores rápida. Noutro dia, os nossos dados não apareciam na tela para quem estava digitando, apenas no computador central. A nossa preocupação era que os jogos tinham acabado de começar a ser transmitidos para a televisão brasileira. O campeonato inteiro foi bem feito. Pensamos: “Hoje que vai começar a ter abrangência nacional, o esporte vai dar algum problema e não vão entrar os dados estatísticos para a televisão?” Ficamos com receio. Mas graças a Deus foi tudo certo e não tivemos problemas.
Diferenças da modalidade em relação ao vôlei de quadra
Às vezes as pessoas acham que o voleibol sentado, por ser de pessoas portadoras de deficiência, é mais lento, mais fácil de avaliar. Muito pelo contrário. É muito bate-rebate o tempo inteiro. Então as ações acontecem muito mais rápidas. Uma diferença para o vôlei de quadra é que pode acontecer defesa, defesa, defesa, o tempo inteiro, que é uma situação rara no voleibol. Por exemplo, para acontecer no voleibol, é aquela bola muito forte que rebate em um, no outro e joga para o outro lado. No vôlei sentado o tempo inteiro acontece esse bate-rebate, o que sai da nossa mecânica de defesa, levantamento e ataque. Para pessoas que avaliavam isso foi um motivo de superação, para se readaptarem àquela situação.
A torcida no ginásio
Dentro da modalidade foi uma surpresa muito grande a quantidade de pessoas que vivenciaram, principalmente nos finais de semana, lotação máxima no ginásio. A torcida não torcia só para o Brasil. Escolhia, como é cultura do brasileiro, alguém para torcer. Abraçava as outras equipes mesmo. Uma coisa que era interessante, mesmo nos jogos do Brasil: foi muito criticado, principalmente no atletismo, a situação do salto com vara, das vaias; no vôlei sentado nós não vimos vaias mesmo quando estava jogando o Brasil contra alguém. Isso que presenciamos achamos muito interessante. Lógico que tem aquele “uh” para desconcentrar, às vezes você escutava um ou outro. O pessoal comemorava até ponto contra o Brasil. As pessoas iam lá para vivenciar e entender um pouco mais da modalidade, torcer mesmo. Às vezes fica meio batido a superação do atleta paralímpico, essas coisas. Mas isso foi uma coisa engrandecedora.
Os atletas do vôlei sentado
Outra coisa muito interessante foi que algumas equipes especificamente, muitos às vezes são mutilados de guerra e por isso estão ali jogando. Uma atleta canadense, que era atleta de vôlei, perdeu a perna há 13 meses e veio para a Paralimpíada. Você imagina: há 13 meses você perdeu um membro do seu corpo, uma perna. Um ano depois você está ali pronto para disputar um evento como esse, se recupera em tão pouco tempo. Às vezes são histórias de pessoas que ficam anos para conseguir acostumar com aquela situação, voltar a uma vida normal. E a pessoa já estava daquela forma. No próprio Canadá a capitã canta o hino em libras o tempo inteiro. Isso foi extremamente emocionante. Não tinha como alguém não se emocionar escutando o hino do Canadá e olhando para aquela situação. Pessoas que estavam jogando no mesmo time e eram pró e contra o governo e às vezes podia dar um problema e os caras nem lembravam que tinham essas diferenças, estavam ali jogando do mesmo lado. Se você parar para olhar o pódio masculino foi Irã, que vive numa eterna guerra, Bósnia, que tem conflito separatista e o Egito, que vive em guerra civil também. O líbero dos Estados Unidos era uma coisa fenomenal: ele buscava a bola no fundo de quadra sem tirar o quadril do chão, porque você não pode levantar o quadril. Às vezes numa bola espirrada ele ia se arrastando até o fundo da quadra e buscava a bola, mobilidade impressionante.
Quais os grandes momentos de emoção dos jogos para você?
Quando o Brasil ficou com a medalha de bronze feminina, uma das atletas, a Janaína, que é do sul de Minas, mas foi revelada para o voleibol pelo Júlio Tadeu, que é um treinador de Barbacena. No primeiro dia eu estava assistindo aos jogos e encontrei com ele e com ela. Quando acabou, a medalha de bronze foi entregue e o Júlio me mandou um áudio no meu celular para que eu levasse até ela e ela escutasse. E os dois ficaram conversando pelo meu celular. Infelizmente não posso divulgar esses áudios. Mas toda vez que eu pego e mostro para alguém e as pessoas escutam os áudios, não tem como não se emocionar. Ver que ela, aos trinta e tantos anos, está sendo medalhista paralímpica e ainda lembra do primeiro professor, que a divulgou para o mundo.
A conquista é de todos
As atletas do Brasil quando saíram do vestiário coincidiram de cruzar conosco na saída. Pedimos para tirar foto, também um pouco tiete, porque víamos a garra e a vontade que elas estavam de vencer o jogo. Pedimos para bater foto com elas, com as medalhas, com o Tom, porque você ganhava a medalha e um bonequinho do Tom, que o cabelo era da cor da medalha. As atletas tiraram a medalha e penduraram na gente. A gente se assustou e falou: “Não precisa, pode ficar com a medalha”. Elas: “Não, a medalha não é nossa. A medalha é do Brasil. Quem ganhou essa medalha foi o Brasil, não foi a gente”. Essa humildade delas, sempre receptivas, todas as delegações. Lógico que alguns países são mais fechados. Irã, China, são um pouco mais reclusos. Mas mesmo assim você parava para falar qualquer coisa e eles respondiam. Nem parecia que estavam no patamar em que estavam, de campeões olímpicos.
A Vila que mudou o modo de vida
Uma diferença que foi vantajosa entre as Olimpíadas e as Paralimpíadas é que nós, os oficiais técnicos nacionais, ficamos na Vila Paralímpica perto dos atletas. A gente almoçava com eles, tomava café com eles. Tinham os espaços de lazer, recreação, mesa de pingue-pongue, fliperama, vídeo game, tudo com eles. A gente tinha esse acesso mais livre para ter esse intercâmbio sociocultural com os atletas. Alguns amigos que foram para a Olimpíada não tinham essa facilidade. Viver na Vila Paralímpica, ficar 14 dias, você via muitas situações. Às vezes um atleta que era favorito ao título, perdeu e estava ali “Perdi, isso acontece, vou treinar para a próxima”. Sempre cabeça em pé, você não via ninguém chorando. Você via atletas da bocha que tinham umas cadeiras que a gente até brincava que pareciam do X-Men, do Professor Xavier. O cara só mexia o braço e andava para cima e para baixo. Tinham telinhas de computador igual à do Stephen Hawking, para se comunicarem. Algumas com braço mecânico, que pegavam o refrigerante e levavam até a boca para se alimentar. Outras pessoas que não conseguiam nem se alimentar e tinham que ser alimentadas por terceiros. A gente vê que nossos problemas do cotidiano não são nada. Mudou muito minha visão sobre o meu modo de vida. Parei de achar que qualquer coisa é problema muito grande. Mudei meu modo de ver a vida em si vendo os problemas que os outros passam.
As modalidades que assistiu
Eu presenciei algumas provas da natação, bocha, basquete de cadeira de rodas, goalball, levantamento de peso e tênis de mesa. Esse ano nos Jogos Escolares, quando eu também trabalho na parte da coordenação, coordenei o goalball. Achei muito interessante porque vi árbitros que trabalharam com a gente nos Jogos Escolares trabalhando nos Jogos Paralímpicos. Fiquei surpreso com a mobilidade dos atletas e vi que na Paralimpíada é similar, apesar de ser muito mais treinado. É proporcionalmente muito maior a capacidade técnica deles. Fazendo um paralelo você vê que muitos daqueles alunos atletas que estavam nos Jogos Escolares, daqui a uns anos, têm totais capacidades de chegarem a ser atletas paralímpicos. A bocha também foi incrível. Às vezes as pessoas só têm movimento de cabeça disputando uma Paralimpíada. Foi incrível ver essas situações. Acho que foram os dois esportes que mais me chamaram atenção, além do próprio vôlei sentado, que eu não conhecia e aprendi muito.
Ficha que demorou a cair
Eu tive nervosismo na minha estreia, no primeiro jogo, por ser a estreia e ser um evento que não estou acostumado a trabalhar. O interessante é que a ficha só veio cair que eu estava na Paralimpíada no dia da final feminina. Estava tocando os hinos das delegações, a gente fica em pé na beira da quadra. Eu olhei para o telão e vi “Gold Medal Match”. Parei e pensei “estou numa final olímpica”. Quando eu pensei em ver uma final olímpica? E estava trabalhando na final paralímpica, dentro da quadra. O que estava aparecendo para o mundo inteiro eu estava influenciando diretamente. Naquele momento eu me desfoquei completamente do jogo e emocionei mesmo. Tive que começar a pensar em casa, em qualquer coisa que não era ligada ao jogo para que eu conseguisse voltar ao normal, acalmar e focar. Naquele momento caiu a ficha que eu estava na Paralimpíada.
Mérito Esportivo Panathlon
No dia 8 de dezembro, de Sá esteve no seleto grupo de 25 agraciados com o Mérito Esportivo Panathlon, maior reconhecimento esportivo de Juiz de Fora e região, promovido pelo Panathlon Club Juiz de Fora. O Panathlon comemora 40 anos de fundação e a noite da entrega do Mérito e da Comenda Carlos de Campos Sobrinho ainda alcança grande repercussão, não só na cidade mas no Brasil e em todos os países em que o Panathlon tem representação.
Texto: Lucas Bernardino – Toque de Bola
Edição: Ivan Elias – Toque de Bola
Fotos: Acervo Pessoal / Raphael de Sá e Tintim/Panathlon Club Juiz de Fora
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