População apegada à própria cultura, ruas de terra e berço dos melhores corredores do planeta. Esse é o Quênia, país africano que foi, durante todo o mês de janeiro, lar do professor e coordenador do projeto CRIA (Centro Regional de Iniciação ao Atletismo), da UFJF, Jorge Perrout, que viajou com o filho Francisco, de 18 anos, atleta do CRIA, para viver experiências únicas nesse lugar de cultura rica e características singulares. A cidade de Iten, na região montanhosa do Estado, foi a escolhida pelos juiz-foranos.
Para agregar novos conhecimentos à sua profissão e condução de seu projeto na UFJF, Perrout se hospedou em uma casa junto a vários atletas de renome, entre eles a queniana campeã da São Silvestre em 2017, Flomena Cheyech. O local, conhecido como “Lar dos Campeões”, faz jus ao nome: é realmente recheado de campeões olímpicos e maratonistas.
Ao ter a oportunidade de acompanhar a rotina dos esportistas africanos, Francisco participou de um campeonato com cerca de 30 meninos e garantiu que o nível de dificuldade da disputa contra os africanos é elevado.
A altitude do local (mais de 2.000 metros acima do nível do mar) também dificulta o desempenho dos que não estão acostumados. A prática de exercícios em locais de grande altitude, com ar rarefeito, como é o caso de Iten, acaba gerando mais resistência nos atletas, sendo um dos fatores que auxiliam os quenianos a terem ótimo desempenho em provas internacionais.
O deslocamento entre a casa em que ficaram hospedados e o centro de treinamento era curto, feito em uma van, na maioria das vezes superlotada. As experiências de pai e filho renderam bons relatos e detalham muito do que acontece no País.
Confira os depoimentos ao Toque de Bola:
Uma longa viagem
“Fomos de Juiz de Fora ao Rio de Janeiro de ônibus, pegamos um voo do Rio para São Paulo, outro voo para Adis Abeba, capital da Etiópia, de lá para a capital do Quênia, Nairobi. De lá, sete horas de ônibus para Eldoret, e de lá para Iten. Na volta, o inverso. Foram dois dias para ir e dois para voltar.”
Atletismo lá = futebol cá
“A questão genética é muito forte. Eu e o Francisco discutíamos e observávamos quantas pessoas com o perfil de corredor, magros e com pernas longas passavam por nós. No Brasil, por exemplo, o número de pessoas com esse porte, proporcionalmente, é muito menor. Então eles realmente já nascem com uma predisposição para serem bons corredores e os treinos, a altitude e a dedicação influenciam ainda mais.
O atletismo no Quênia é como se fosse o nosso futebol: há uma quantidade muito grande de pessoas, de jovens, que possuem uma habilidade grande para isso, e que sonham em serem profissionais, para viver do esporte.”
Treino o dia inteiro
“A preparação no Quênia não é muito diferente da praticada no resto do mundo. Passa realmente por uma questão genética também. Eles treinam muito, e até mesmo o fato de andarem grandes distâncias desde pequenos, de casa até a escola, em ruas de terra, gera um hábito. O treinamento em si é feito em tempo integral. Nos centros de treinamento, como o que ficamos, eles acordam cedo, treinam pela manhã, descansam, e voltam a treinar no restante do dia. Os atletas chegam a passar períodos de até três meses nos centros dedicados a esses treinos.”
Atletas premiados: casa melhor e orgulho
“É extremamente frequente um atleta queniano vencer uma prova, e as premiações de uma competição a nível mundial possuem, muitas vezes, um valor financeiro bom. Assim, é muito comum você observar, em meio à simplicidade do local, casas maiores, que pertencem a esses atletas que já receberam bons prêmios.
São pessoas muito apegadas à própria cultura, que mesmo saindo para disputar provas em outros países mais desenvolvidos, acabam retornando às origens com orgulho. Por mais que gostem de outras coisas em outras culturas, não se desapegam de suas raízes.
É bastante comum ver o orgulho das pessoas ao mostrar uma casa que pertence a algum atleta que já foi vencedor. Acaba servindo de motivação para aqueles que sonham em ser campeões.”
Hábitos alimentares
“Os quenianos comem, basicamente, o ugali, que é uma espécie de angu de milho branco. Eles costumam comer esse carboidrato junto a alguma verdura na tribo. Também costumam comer ovos, mas bem pouco.
Outro costume é o leite, que eles colocam no chá, tomam o dia inteiro, e também comem uma massa feita à base de trigo, uma espécie de panqueca. A alimentação natural chama a atenção. É um país de economia ainda muito rural. Então o que se consome, na maioria das vezes, é produzido por eles, é saudável.”
Desnutrição e crença no “ugali”
“Conversando com uma agente de saúde pública, ela nos confirmou que o maior problema do País nesse aspecto é a desnutrição, principalmente em diversas vilas de difícil acesso. O ugali é uma espécie de crença deles, acreditam que dá força, que é a base de tudo, mas na verdade é apenas um carboidrato. Os próprios corredores, que diferentemente da zona rural não têm um acesso restrito somente ao ugali, acreditam que este é um alimento imprescindível. Antes de ir para o Quênia, eu imaginava que eles poderiam ter um déficit calórico, mas não. Eles comem muito, entretanto é uma alimentação unilateral, basicamente composta por carboidratos.”
Poligamia “sustentável” e nada de horário rígido
“Os hábitos sociais são curiosos por lá. É uma sociedade mais machista do que a nossa, por incrível que pareça, onde há poligamia. Um homem pode ter mais de uma mulher desde que tenha condições de sustentá-las, e o contrário não é permitido. Uma questão bastante curiosa é a relação com os horários. Não há essa preocupação e compromisso como existe no Brasil. Não se marca um compromisso às 14h, mas sim à tarde. Não às 9h, mas sim pela manhã. É muito interessante isso. Como a vida é mais parada, mais rural, eles não criam essa pressão pelos horários marcados.”
Massagem num galinheiro
“Basicamente tudo é improvisado por eles. O Francisco foi atendido por um massagista dentro de um galinheiro que havia no local onde ficamos. O rapaz faz massagem em corredores olímpicos, e quando olhamos, havia um colchão posicionado na parte interna do local onde ficavam as galinhas. É muito curioso.”
Recompensa
O treinamento e preparação de Francisco na África já deram resultado. O jovem sagrou-se, na manhã do primeiro domingo de fevereiro, campeão da Copa Brasil Cross-Country na categoria sub-20, em Bragança Paulista (SP).
Acesse aqui a cobertura do Toque de Bola sobre essa competição.
A conquista garantiu uma vaga na Seleção Brasileira de Atletismo ao juiz-forano, que junto aos atletas Valério de Souza Fabiano e Gilberto Silvestre Lopes irá representar o Brasil no Pan-Americano de Cross-Country, programado para 17 de fevereiro, na cidade de São Salvador, em El Salvador.
Reportagem: Bruno Brigatto, estagiário do Toque de Bola
Edição: Ivan Elias – Editor Toque de Bola
Fotos: Arquivo Pessoal